Cílios
que se cerram para sempre
“O dia que chegar, chegou.
Pode ser hoje ou daqui a 50 anos.
A única coisa certa
é que ela vai chegar.”
Ayrton Senna
Muitos são
os conceitos e teorias sobre a morte, cada um a sua forma de pensar e sentir
diante desse mistério.
A
médica-geriatra Ana Claudia Quintana Arantes (USP) diz: “A morte está dentro da
vida, não depois. É importante que você olhe para ela com toda a alegria de
viver.” O filósofo francês Jean-Paul Sartre funda muito da nossa visão de que
morrer é um fracasso, um escândalo, uma ideia pasmosa com a qual é impossível
lidar e inútil tentar conviver: “Morrer é um absurdo”. O pensador alemão Arthur
Schopenhauer (1788-1860) chega ao ponto de afirmar que "a morte é a musa
da filosofia" e o grego Sócrates define a filosofia como "preparação
para a morte". Sem a morte, seria mesmo difícil que se tivesse filosofado.
Talvez
nunca saibamos a verdade para essa ocasião; ninguém jamais voltou dela em sã
consciência para explanar o acontecido. O comediante Charlie Chaplin afirma: “É
saudável rir das coisas mais sinistras da vida, inclusive da morte. O riso é um
tônico, um alívio, uma pausa que permite atenuar a dor.”
Estudiosos
se descabelam perante a profundidade desse assunto, e o que descobrem? O que já
era sabido: “interrupção definitiva da vida de um organismo.”
O fato é
que já nascemos sabendo disso, estudamos que o antônimo de vida é morte. E a
escola dos dias vêm nos ensinando que a morte é o desligamento terreno oriundo
de várias causas; e para cada uma entra em cena o médico que se especializa por
ela; não para a morte.
“(...)
tudo se passa como se o médico aprendesse a discorrer sobre as doenças para
esquecer o fato definitivo da morte. Esse esquecimento, porém, afasta a
medicina de um aspecto essencial da natureza humana: a consciência da
fragilidade, a certeza da morte" (Koifman, 2001, p. 8).
Mas se já
nascemos e crescemos sabendo disso, qual é a surpresa? Mario Quintana em seu
poetar gauchesco, escreveu: “Esta vida é uma
estranha hospedaria/ De onde se parte quase sempre às tontas/ Pois nunca as
nossas malas estão prontas/ E a nossa conta nunca está em dia.”
Metaforicamente
ele diz que nascemos em meio a um bando de estranhos e vamos aos poucos nos
afinando a essa gente, criando vínculos, mas
já com partida anunciada que ao dizer dele, zonzas por algum mal, sem estar de acordo com isso e muita coisa
deixada pra depois, inclusive viver. E se estamos na vida, é justo que façamos
jus a isso: viver.
O nosso
maior erro é achar que a morte está lá no fim. Talvez nem seja um erro, é que
não queremos nos perturbar com isso; tentamos todos os dias enganar a nós
mesmos. A morte não está no amanhã; a morte está em nosso dia a dia e mais ainda no ontem.
O
compositor Raul Seixas escreveu um “Canto para minha morte” (1976), onde ele
entoa: “A morte, surda, caminha ao meu lado. E eu não sei em que esquina ela
vai me beijar. (...) Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que
fazer?”
A cada instante temos notícias dela; sempre leva alguém consigo: conhecido, desconhecido,
famoso, anônimo, rico, qualquer raça, cor, idade, sexo. Se existe algo que não
tem preconceito algum é a morte.
Não
entendo como não se acostumar com isso.
Alguns
médicos têm dificuldades em lidar com a morte. Há sensação de impotência e
dúvidas constantes: fiz certo? Tudo que estava ao alcance? Onde errei? E isso
de certa forma os mata aos poucos num estado culposo. E quando o paciente é
alguém cuja morte é inesperada, o estado piora. Pessoas com uma doença crônicas
dão aos familiares tempo regular para preparar o momento da passagem; que ainda
assim, muitas vezes não é o suficiente.
O doutor
Yves de Locht é especialista em eutanásia na Bélgica, onde esse ato é
legalizado. Para ele, a morte assistida "é um
ato importante e difícil que tem um grande impacto emocional, eu não chamo de
matar um paciente. Ele encurtou sua agonia, seu sofrimento. Eu lhe forneço o
cuidado final."
Todos morreremos. Esse é um lance tão natural quanto nascer
e crescer. No entanto, a ideia da finitude nos enche de terror. Como ser humano
não me ‘dessensibilizei’ perante esse acontecimento tão intrínseco à vida.
Entendi que é inteligente aceitar.
Há quem
define a morte como sendo “O término da vida terrena de onde temos que sair,
assim como chegamos, sem bens materiais algum; levando apenas o bem que fizemos
as pessoas, para esse novo mundo exclusivamente espiritual.”
Concordo
em parte: “O término da vida terrena” já sabemos. Quanto aos bens materiais,
também. Já os bens que fizemos em vida, não tenho certeza se são levados, já
que estamos em morte; esse mundo exclusivamente espiritual, não sei muito
sobre. Como dito no início, ninguém em sã
consciência volta para dizer isso. Levando o meu maior respeito aos “Espíritas”
que professam igualmente as ideias da sobrevivência da alma, da reencarnação e
do intercâmbio entre encarnados e desencarnados.
Pesquisas confirmam que “pessoas com forte grau de
envolvimento religioso, independente da crença, têm menos medo da morte”,
afirma a psicóloga Maria Júlia Kovácz, coordenadora do Laboratório de Estudos
sobre a Morte (LEM-USP) . “A fé ajuda a superar a ansiedade em relação à idéia
de finitude”, diz ela. Para o psicanalista Roosevelt Cassorla, “na religião o
indivíduo convive melhor com a finitude porque lá encontra certezas sobre porque vive, morre e o que
acontece após a morte.”
O máximo que tive foram sonhos em estado de sono com pessoas
já falecidas, sem entender muito o que se passava e sem tirar conclusões. Nas
experiências que tive com a morte é claro que sem dúvida ela levou a melhor.
Não temos
direito a último pedido, sequer de barganhar ou ofertar algo. Ela vai embora
simplesmente num fechar de olhos para sempre.
Acometido por um câncer estomacal e convivendo com ele
quase cinco anos, certa vez meu pai disse:
_Minha
filha, nunca estaremos preparados para tudo, mas a morte todos nós temos
obrigação de saber lidar com ela, faz parte do nosso ciclo. Fazer de conta que
ela não existe é ser bastante idiota. Ela não tem muita importância; quando
estamos vivendo não tem morte e quando morremos, já não temos vida.
Não sei se
ele leu isso em algum lugar ou se era mesmo da poesia que existia dentro dele.
Como esquecer isso, ainda mais nesses dias tão funestos em meio a essa
pandemia?
Ainda
sobre o meu pai, foi quando senti a morte pela primeira vez frente a frente.
Ela é incolor, inodora; não diria insípida, porque ela tem gosto de lágrimas de
dor. O último pedido dele a mim foi que desse a ele água; por isso essa
definição instantânea diante da morte. E quando ele tomou o primeiro gole de água,
encostado no meu peito a morte fez questão do momento e fechou-lhe os olhos.
Tempos
depois foi com a minha mãe. Após
um grave acidente de automóvel, onde fraturou a pelve/quadril; era comum dizer
que “quebrou a bacia”; fraturou a clavícula, mais corte supercílio e muitas
escoriações. Depois de ficar um mês deitada só de costas, ela se reergueu com
tanta força e vigor; inacreditável. Porém, logo ela se deparou com uma insuficiência respiratória, não sei
se provinda do cigarro; quem sou eu para dizer isso?
Me lembro dela saindo do quarto de uma unidade de atendimento intensivo,
sendo levada pela médica em uma cadeira de rodas para uma sala de emergência. Peguei todos os pertences
do quarto e as segui. Era logo adiante a sala mais preparada.
Por falta
de profissionais da saúde, a médica me pediu ajuda para segurar a mão da minha
mãe, agora não mais na cadeira, mas em uma maca. Uma pressão tão grande ali,
algo inexplicável. Era como se eu já soubesse o final.
De repente
a médica pede autorização para que minha mãe seja entubada; e eu prontamente
disse que fizesse o que fosse melhor no momento, mas naquele momento não mais
existia o melhor. A última imagem que tive, foi da médica tentando reanimar a
minha mãe e a morte fazendo das linhas curvas do frequencímetro, linhas retas.
Outra vez
eu de frente com a morte; impotente.
Quando o
meu irmão abaixo de mim faleceu, eu não estive no mesmo espaço que a morte. Ela já havia passado por lá a
três dias atrás. Ele foi encontrado em sua casa com os sintomas do desligamento
já avançado, mas a morte não lhe era descartada, assim como de ninguém. O seu
coração andou falhando e para o funcionamento tinha uma endoprótese expansível
e muitos remédios.
Assim a
morte faz suas visitas sem voltar com a mão abanando; não creio que ela fique
esperando alguém se agonizar. Ela chega na hora certa como um sopro de areia em
nossos olhos e um soco na alma.
Temos que
ser realistas, já nascemos sabendo dela; repito. Todos iremos passar por isso,
sem exceção. A aceitação não quer dizer que não sou sensível, apenas ciente.
Ficamos um pouco endurecidos, às vezes as lágrimas ficam um pouco ressequidas,
mas o tempo vem e amolece o que ainda é possível, nas partes em que ainda os
cascos não foram criados.
Quanto ao
velório, não sei e não quero saber quem inventou, acho de mau gosto. Quem
supostamente está com dores na alma deveria repousá-la de imediato a despedida
e liberar a matéria. Esperar parentes de longe que supostamente não se
importaram com a vida é algo forçado. Carinho se dá em vida.
Talvez o
luto seja o choque entre o auge do amor com o do ódio, num equilíbrio que quase
estatiza, mas passa; ou sei lá...
A parte
boa é que a morte não nos tira tudo; ela deixa lembranças e saudade.
Ela não é
surpresa. Só não marca hora. Temos que nos organizar pra ela também.
Raquel
Ordones
Uberlândia
MG
Referencial
Bibliográfico
Koifman,
L. A estranheza do médico frente à morte: lidando com a angústia da condição
humana – Periódicos Eletrônicos em Psicologia. 2012